"Dai-me a alegria / Do poema de cada dia. / E que ao longo do caminho / Às almas eu distribua / Minha porção de poesia" (Mario Quintana - A cor do invisível. São Paulo: Globo, 2005. p 142)
Da minha vida, o que eu me lembro
É uma
Sucessão de janelas fechadas
Nalgum país de sonho...
Apago-me, suponho,
Como as luzes de uma festa.
Ah! uma coisa resta,
Misterioso reflexo no escuro:
Teus lábios úmidos como frutos mordidos!
Mario Quintana (Preparativos de viagem, p. 131)
Citando Fernando Pessoa...
FOI UM momento O em que pousaste Sobre o meu braço, Num movimento Mais de cansaço Que pensamento, A tua mão E a retiraste. Senti ou não? Não sei. Mas lembro E sinto ainda Qualquer memória Fixa e corpórea Onde pousaste A mão que teve Qualquer sentido Incompreendido, Mas tão de leve!... Tudo isto é nada, Mas numa estrada Como é a vida Há muita coisa Incompreendida... Sei eu se quando A tua mão Senti pousando Sobre o meu braço, E um pouco, um pouco, No coração, Não houve um ritmo Novo no espaço? Como se tu Sem o querer, Em mim tocasses Para dizer Qualquer mistério, Súbito e etéreo, que nem soubesses Que tinha ser. Assim a brisa Nos ramos diz Sem o saber Uma imprecisa Coisa feliz.
(Mensagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. p 228)
Era uma vez um homem que estava pescando,
Maria. Até que apanhou um peixinho! Mas o peixinho era tão pequenininho e
inocente e tinha um azulado tão indescritível nas escamas que o homem ficou com
pena. E retirou cuidadosamente o anzol e pincelou com iodo a garganta do
coitadinho. Depois guardou-o no bolso traseiro das calças, para que o animalzinho sarasse no quente. E desde então ficaram inseparáveis. Aonde
o homem ia, o peixinho o acompanhava, a trote, que nem um cachorrinho. Pelas
calçadas. Pelos elevadores. Pelos cafés. Como era tocante vê-los no
"17"! - o homem, grave, de preto, com uma das mãos segurando a xícara
de fumegante moca, com a outra lendo o jornal, com a outra fumando, com a outra
cuidando o peixinho, enquanto este, silencioso e levemente melancólico, tomava
laranjada por um canudinho especial...
Ora, um dia o homem e o peixinho passeavam
à margem do rio, onde o segundo dos dois fora pescado. E eis que os olhos do
primeiro se encheram de lágrimas. E disse o homem ao peixinho:
"Não, não me assiste o direito de te
guardar comigo. Por que roubar-te por mais tempo ao carinho do teu pai, da tua
mãe, dos teus irmãozinhos, da tua tia solteira? Não, não e não! Volta para o
seio da tua família. E viva eu cá na terra sempre triste!...”
Dito isto, verteu copioso pranto e, desviando o
rosto, atirou o peixinho n’água. E a água fez um redemoinho, que foi depois
serenando, serenando... até que o peixinho morreu afogado...
Será do tempo? Será do quê? Os meus sapatos rincham, os meus sapatos cantam de alegria. E eu vou andando e aguardando cá de cima - que o seu oculto motivo chegue afinal até meu coração.
Mario Quintana (Caderno H, p 276)
Citando Cecília Meireles...
Transformação do dançarino
Nasce da sombra o dançarino, de um ovo de seda e mistério. E seu perfil é transparente e sua carne é a de um inseto.
E eu o amo como às borboletas, à asa das libélulas, e erro no seu mundo sem solo, reino que se vai tornando sidéreo.
Suas tênues mãos nada tocam, e olha entre verdes águas, cego. Cada posição de seu corpo é um símbolo instantâneo e hermético.
Toma nos lábios o silêncio e é um peixe bebendo o mar, quieto. Gira e, súbito se divide, como espelho que cai de um prego.
(Poesias Completas de Cecília Meireles, Volume II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973. p 172)
Quem ama inventa as coisas a que ama...
Talvez chegaste quando eu te sonhava.
Então de súbito acendeu-se a chama!
Era a brasa dormida que acordava...
E era um revôo sobre a ruinaria,
No ar atônito bimbalhavam sinos,
Tangidos por uns anjos peregrinos
Cujo dom é fazer ressurreições...
Um ritmo divino? Oh! Simplesmente
O palpitar de nossos corações
Batendo juntos e festivamente,
Ou sozinhos, num ritmo tristonho...
Oh! meu pobre, meu grande amor distante,
Nem sabes tu o bem que faz à gente
Haver sonhado... e ter vivido o sonho!
Mario Quintana (A cor do invisível, p 58)
Citando Fabrício Carpinejar...
Não é nenhum grande ato que desperta o amor, não é um heroísmo,
uma atitude exemplar, um feito impressionante.
O que faz um homem amar uma mulher e uma mulher amar o homem é
tão pessoal, que é possível passar uma vida inteira sem desvendar o motivo. Não
é necessário ter consciência para ser feliz. Não é fundamental entender para
amar. Mas é mais bonito.
Fico me perguntando o que inspirou minha confiança na Cínthya.
Qual foi a delicadeza que ela cometeu a ponto de me viciar no convívio? O que
realizou no começo do relacionamento que mexeu comigo e não quis mais
abandoná-la?
O que ela aprontou de errado que deu tão certo? O que me pôs a
repeti-la um dia atrás do outro sem cansar? O que me seduziu de tal forma, que
entrei uma vez em sua casa com uma mochila e voltei com uma mala?
Talvez tenha sido sua simplicidade. Eu me impressiono com o que
é espontâneo. Não havia quadros em suas paredes, nem estantes. A única coisa
que estava de pé era o violão. Aquilo me emocionou: a música de sentinela. Ela
brincou:
– O violão é meu confidente, meu melhor amigo.
Inventei de dedilhar as cordas para descobrir logo seus segredos,
só que desafinei e ri envergonhado. Não estava maduro para o mistério, não
merecia ainda suas lembranças, dependia de mais cumplicidade.
Mas não foi isso, ou somente isso, sempre tem algo que se soma.
Acho que ela travou meu olhar na hora em que passeávamos de
carro pela orla do Guaíba. Estreava na rádio a canção Janta, de Marcelo Camelo
e Mallu Magalhães.
“Eu ando em frente por sentir vontade...”
Cínthya cantava sem conhecer a letra. Aprendia a letra enquanto
cantava. Longe do medo da gafe. Em voz alta, errando, tropeçando, gravando o
refrão. Completava os trechos que não entendia com melodia e dirigia as rimas
até o fim. Descobri que ela tinha coragem. Não iria temer um desafio. Mesmo que
fosse complicado como eu.
Pensando bem, me rendi no café da manhã. Quando ela me ofereceu
um saco de bolachas doces do bairro Liberdade. Eu peguei as redondas,
perfeitas, para explodi-las com exclusividade em meus dentes.
Ela não; ciscou os farelos. Optou pelas bolachas partidas. Do
fundo, recolhia os pequenos retângulos, triângulos, quadrados desiguais.
Compadecida do pouco, enamorada da miudeza.
Um gesto silencioso que me cativou. Cuidava de mim já na
primeira manhã juntos. Comia as quebradas para me deixar as inteiras. Havia
cinco ou seis bolachas intactas:
– Toma, por favor...
Reprisando nossa
vida, ela avisou, naquele momento, que nunca partiria meu coração.
Olho-te espantado:
Tu és uma Estrela do Mar.
Um minério estranho.
Não sei...
No entanto,
O livro que eu lesse,
O livro na mão.
Era sempre o teu seio!
Tu estavas no morno da grama,
Na polpa saborosa do pão...
Mas agora encheram-se de sombra os cântaros
E só o meu cavalo pasta na solidão.
Mario Quintana (O aprendiz de feiticeiro, p 23)
Citando Fernando Pessoa...
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos. E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor Me sinto triste de gozá-lo tanto. E me deito ao comprido na erva, E fecho os olhos quentes, sinto todo meu corpo deitado na realidade, Sei a verdade e sou feliz.
(O Eu profundo e os outros Eus (seleção poética). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. p 146)
A memória é um sótão atravancado de objetos inúteis, onde tanto desejaríamos encontrar aquelas coisas perdidas que - de tão perdidas - já nem sabemos mais.
Minha estrela não é a de Belém:
A que, parada, aguarda o peregrino.
Sem importar-se com qualquer destino
A minha estrela vai seguindo além...
- Meu Deus, o que é que esse menino tem?-
Já suspeitavam desde eu pequenino,
O que eu tenho? É uma estrela em desatino...
E nos desentendemos muito bem!
E quando tudo parecia a esmo
E nesses descaminhos me perdia
Encontrei muitas vezes a mim mesmo...
Eu temo é uma traição do instinto
Que me liberte, por acaso, um dia
Deste velho e encantado Labirinto.
TRAGO os cabelos crespos de vento e o cheiro das rosas nos meus vestidos. O céu instala no meu pensamento Os seus altos azuis estremecidos.
Águas borbulhantes, árvores tranquilas vão adormentando meus tempos chorados. E a tarde oferece às minhas pupilas nuvens de flores por todos os lados.
Ó verdes sombras, claridades verdes, que esmeraldas sensíveis hei nutrido, para sobre o meu coração verterdes mirra de primaveras e de olvidos?
Ó céus, ó terra que de tal maneira ardente e amarga tenho atravessado, por que agora pensais com tão fino cuidado vossa mansa, calada, ferida prisioneira?
(Cecília Meireles - Seleta em prosa e verso. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1973. p 95)
Quando eu me for, os caminhos continuarão andando...
E os meus sapatos também!
Porque os quartos, as casas que habitamos,
Todas, todas as coisas que foram nossas na vida
Possuem igualmente os seus fantasmas próprios,
Para alucinarem as nossas noites de insônia!
Mario Quintana (Velório sem defunto, p 99)
Citando Heráclito de Éfeso...
"Para os que entram nos mesmos rios, outras e outras são as águas que correm por eles."
Se o tempo transforma e desfaz tantos laços, também nos entrega a sensata constatação de que não vale a pena lutar pelo que cumpriu lindamente seu papel e ficou no passado.
Já não somos os mesmos de segundos atrás e não há por que perpetuar tudo aquilo que segue... e que se isenta de culpas, porque é da natureza da vida o eterno movimento.
Natural dos belos laços é a saudade, onde nos reencontramos no melhor do que vivemos... e que já não existe mais. Porque se foi um daqueles cor de rosa, bem de menina, eu ficava mais bonita com ele por perto.
Hoje apenas sigo na fluidez do tempo... de um modo incompleto, com uma lembrança feliz e um sorriso um pouco mais triste.
Basta de poemas para depois...
Ó Vida, e se nós dois
Vivêssemos juntos?
Mario Quintana (Baú de espantos, p 111)
Citando Florbela Espanca...
Se tu viesses ver-me...
Se tu viesses ver-me hoje à tardinha, A essa hora dos mágicos cansaços, Quando a noite de manso se avizinha, E me prendesses toda nos teus braços...
Quando me lembra: esse sabor que tinha A tua boca... o eco dos teus passos... O teu riso de fonte... os teus abraços... Os teus beijos... a tua mão na minha...
Se tu viesses quando, linda e louca, Traça as linhas dulcíssimas dum beijo E é de seda vermelha e canta e ri
E é como um cravo ao sol a minha boca... Quando os olhos se me cerram de desejo... E os meus braços se estendem para ti...
Fonte: (Sonetos Forbela Espanca. Lisboa: Biblioteca Ulisseia de autores portugueses, 1990. p 99)
Quem nunca quis morrer
Não sabe o que é viver
Não sabe que viver é abrir uma janela
E pássaros pássaros sairão por ela
E hipocampos fosforescentes
Medusas translúcidas
Radiadas
Estrelas-do-mar... Ah,
Viver é sair de repente
Do fundo do mar
E voar...
e voar...
cada vez mais para o alto
Como depois de se morrer!
Enquanto me davam a extrema-unção,
Eu estava distraído...
Ah, essa mania incorrigível de estar pensando sempre noutra coisa!
Aliás, tudo é sempre outra coisa
- segredo da poesia -
E, quando a voz do padre zumbia como um bezouro,
Eu pensava era nos meus primeiros sapatos
Que continuam andando, que continuam andando,
Até hoje
Pelos caminhos deste mundo.
As coisas que não conseguem ser
olvidadas continuam acontecendo.
Sentimo-las como da primeira vez,
sentimo-las fora do tempo,
nesse mundo do sempre onde as
datas não datam. Só no mundo do nunca
existem lápides... Que importa se -
depois de tudo - tenha "ela" partido,
casado, mudado, sumido, esquecido,
enganado ou que quer que te haja
feito em suma? Tiveste uma parte da
sua vida que foi só tua e, esta, ela
jamais a poderá passar de ti para ninguém.
Há bens inalienáveis, há certos momentos que,
ao contrário do que pensas,
fazem parte da tua vida presente
e não do teu passado. E abrem-se no teu
sorriso mesmo quando, deslembrado deles,
estiveres sorrindo a outras coisas.
Ah, nem queiras saber o quanto
deves à ingrata criatura...
A thing of beauty is a joy for ever
- disse, há cento e muitos anos, um poeta
inglês que não conseguiu morrer.