segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Contrição





     Bem que eu desejaria entender tanto de poesia como certos críticos, mas aí, então, não conseguiria fazer um único verso...

Mario Quintana (Caderno H, p 175)





Citando Clarice Lispector...


Não, não é fácil escrever. 
É duro como quebrar rochas.
Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados.

Fonte: www.simplesmente-clarice.blogspot.com




Imagem: www.deviantart.com

domingo, 23 de outubro de 2011

Encontro mágico




     Eis que encontro na rua uma das moças mais lindas do mundo.
     Vestida simplesmente, parecia no entanto uma princesa
     Um meigo olhar, um sorriso que parecia uma aurora dentro de nós.
     Não pude, não pude mais e lhe indaguei de súbito:
     "Como é teu nome, minha querida?"
     E ela respondeu-me: AUSÊNCIA.

     Mario Quintana (Velório sem defunto, p 51)





Citando Cecília Meireles... 

Recordação


AGORA, o cheiro áspero das flores
leva-me os olhos por dentro de suas pétalas.

Eram assim teus cabelos;
tuas pestanas eram assim, finas e curvas.

As pedras limosas, por onde a tarde ia aderindo,
tinham a mesma exalação de água secreta,
de talos molhados, de pólen,
de sepulcro e de ressurreição.

E as borboletas sem voz
dançavam assim veludosamente.

Restitui-te na minha memória, por dentro das flores!
Deixa virem teus olhos, como besouros de ônix,
tua boca de malmequer orvalhado,
e aquelas tuas mãos dos inconsoláveis mistérios,
com suas estrelas e cruzes,
e muitas coisas tão estranhamente escritas
nas suas nervuras nítidas de folha,
- e incompreensíveis, incompreensíveis.


(Cecília Meireles - Seleta em prosa e verso. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1973. p 51)







Imagem: www.weheartit.com

domingo, 16 de outubro de 2011

A bem-amada na praia


      Sua bundinha
     Deixou na areia
     A forma exata
     De um coração!

     Mario Quintana (Preparativos de viagem, p 137)




Citando Vinicius de Moraes... 

Receita de mulher


As muito feias que me perdoem 
Mas beleza é fundamental. É preciso 
Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso 
Qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture 
Em tudo isso (ou então 
Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular Chinesa). 
Não há meio-termo possível. É preciso 
Que tudo isso seja belo. É preciso que súbito 
Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto 
Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora. 
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche 
No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso
Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas 
Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços 
Alguma coisa além da carne: que se os toque 
Como o âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos 
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro 
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e 
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem 
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, então 
Nem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma boca 
Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência. 
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos 
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar as pernas, e as pontas pélvicas 
No enlaçar de uma cintura semovente. 
Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras 
É como um rio sem pontes. Indispensável 
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida 
A mulher se alteia em cálice, e que seus seios 
Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca 
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas. 
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebal 
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal! 
Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um certo volume de coxas 
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem 
No entanto sensível à carícia em sentido contrário. 
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio 
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!) 
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos 
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão 
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre 
Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos 
Discretos. A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso e na face 
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior 
A 37º centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras 
Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes 
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da terra; e 
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão 
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta 
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros. 
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que se se fechar os olhos 
Ao abri-los ela não mais estará presente 
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá 
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber 
O fel da dúvida. Oh, sobretudo 
Que ela não perca nunca, não importa em que mundo 
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade 
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma 
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre 
O impossível perfume; e destile sempre 
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto 
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina 
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição 
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.


Fonte: www.viniciusdemoraes.com.br











Imagem: Dorival Caymmi ("Mulher na praia")

domingo, 9 de outubro de 2011

Catástrofe



    O meu esporte único é a luta corpo a corpo com o meu  Anjo da Guarda.
    Lutamos tanto pelo que queremos
    Que no final ficaremos redondamente mortos no chão,
    Para maior alívio de Nosso Senhor,
    Para sempre livre de nós dois!

    Mario Quintana (Velório sem defundo, p 149)




Citando Florbela Espanca... 

Alma perdida


Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma da gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!

Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente...
Talvez sejas a alma, a alma doente
Dalguém que quis amar e nunca amou!

Toda a noite choraste... e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!

Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras minh'alma
Que choraste perdida em tua voz!...

Fonte: (Sonetos Forbela Espanca. Lisboa: Biblioteca Ulisseia de autores portugueses, 1990. p 50)








Imagem: www.deviantart.com