segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Pequeno poema de após chuva


     Frescor agradecido de capim molhado
     Como alguém que chorou
     E depois sentiu uma grande, uma quase envergonhada alegria
     Por ter a vida
     Continuado...

     Mario Quintana (Baú de espantos, p 74)







Imagem: www.weheartit.com

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Meu bonde passa pelo mercado


   O que há de bom mesmo não está à venda,
   O que há de bom não custa nada.
   Esse momento é a flor da eternidade!
   Minha alegria aguda até o grito...
   Não essa alegria alvar das novelas baratas,
   Pois minha alegria inclui também minha tristeza - a nossa
   Tristeza...
   Meu companheiro de viagem, sabes?
   Todos os bondes vão para o Infinito!

   Mario Quintana (Preparativos de viagem, p 71)




 Citando Fernando Pessoa... 

  Se sou alegre ou sou triste? 

   Se sou alegre ou sou triste?...
   Francamente, não o sei.
   A tristeza em que consiste?
   Da alegria o que farei?
   Não sou alegre nem triste.
   Verdade, não sei que sou.
   Sou qualquer alma que existe
   E sinto o que Deus fadou.
   Afinal, alegre ou triste?
   Pensar nunca tem bom fim...
   Minha tristeza consiste
   Em não saber bem de mim...
   Mas a alegria é assim.

   Fonte: www.arquivopessoa.net




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sexta-feira, 25 de novembro de 2011

A pedra e o grito



        Há cerca de mais de cinqüenta anos foi para nós uma lição de poesia aquele poema da pedra no meio do caminho. Pelo seu despojamento. Pela sua expressividade. Por si mesmo, sem mais explicações.
        Ah! era um encanto e um gozo, na verdade vos digo, primeiro pela indiferença a todos os cânones e depois pela cara com que ficavam os canônicos.
        Nem foi por outro motivo que eu disse, em resposta a inquérito, que aquela pedra foi um marco histórico na poesia brasileira. Desde então, como depois da bomba atômica, nunca mais fomos os mesmos.
         Teria inaugurado uma arte poética?
         Nada disso. Seria o cúmulo que aquele impacto de liberdade criadora nos escravizasse a mais uma escola.
         Sim, meninos, vamos gazear todas as escolas! Nem todos sabem como isso faz bem...
        E agora, no ano em que se está festejando o sesquicentenário do grito do Ipiranga, vem muito a propósito proclamarmos - também - que poesia é independência ou morte.
     Mas quem diria que o Carlos Drummond, que lançou o grito daquela pedra, está completando terça feira 70 anos? Ninguém acredita. Que precocidade!
       Pois o fato - que nada tem com data - é que ainda o vemos na pista com a mesma agilidade com que começou. De modo que os seus fiéis, impacientes, como deve estar o próprio poeta, com esse palanque comemorativo, só se lembram de dizer, para bem de todos e particular dignidade da poesia:
        - Continue, Carlos, continue...
        E não lhe chamemos, por favor, de coisa nenhuma: seria impróprio adjetivar um poeta tão substantivo como Carlos Drummond de Andrade.
(1972)

Mario Quintana (Porta giratória, p 139)




Citando Carlos Drummond de Andrade... 


No meio do caminho
  
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Fonte: A Magia da poesia





Imagem: Carlos Drummond de Andrade ao lado de cópia da escultura do Profeta Isaías, do Aleijadinho (final da década de 30) .
Fonte: Drummond frente e verso. Rio de Janeiro: Edições Alumbramento, 1989.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Extra-terrena

(para Cecília Meireles)




   Nós colhíamos flores de hastes muito longas
   E cujos nomes nem ao menos conhecíamos...
   E nem sequer, também, sabíamos os nossos nomes...
   E para quê, se um para o outro éramos Tu, apenas...
   Ou quem sabe se a morte nos houvera bordado numa tapeçaria
   A que o vento emprestasse a vida por um momento?
   E por isso os nossos gestos eram ondulantes como as plantas marinhas
   E as nossas palavras como suspensas no vento...

   Mario Quintana (Preparativos de viagem, pg 35)






Citando Cecília Meireles...



Uma flor voava


Uma flor voava.
Por mais que pareça impossível,
uma flor voava.
Uma flor amarela ia voando,
e levava ao lado o seu botão fechado.
Parecia uma jovem graciosa,
com sua bolsinha no braço.
Voava a flor amarela,
no ar indefinido.

E nuns troncos imensos,
muito grossos, muito altos,
uns troncos cheios de crepúsculo,
como colunas no céu,
sentinelas da vida,
nuns troncos muito escuros
iam pousando enormes borboletas flácidas,
amarelas e pretas,
que decerto pousavam para sempre,
sem rumo nem poder,
amarelas e pretas, muito sinistras,
muito flácidas, muito grandes.

E a pequena flor amarela voava,
solta, levíssima,
por um rumo secreto,
de alma evadida.




(Poesias Completas de Cecília Meireles, Volume XIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p 127)


Imagem: www.weheartit.com

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Lili



   Teu riso de vidro
   desce as escadas às cambalhotas
   e nem se quebra,
   Lili,
   meu fantasminha predileto!
   Não que tenhas morrido...
   Quem entra num poema não morre nunca
   (e tu entraste em muitos...)
   Muita gente até me pergunta
   quem és... De tão querida
   és talvez a minha irmã mais velha
   nos tempos em que eu nem havia nascido.
   És a Gabriela, a Liane, a Angelina... sei lá!
   És a Bruna em pequenina
   que eu desejaria acabar de criar.
   Talvez sejas apenas a minha infância!
   E que importa, enfim, se não existes...
   Tu vives tanto, Lili! E obrigado, menina,
   pelos nossos encontros, por esse carinho
   de filha que eu não tive...

   Mario Quintana (Esconderijos do tempo, p 78)




Citando Carlos Drummond de Andrade... 


O que viveu meia hora
  
Nascer para não viver
só para ocupar
estrito espaço numerado
ao sol-e-chuva
que meticulosamente vai delindo
o número
enquanto o nome vai-se autocorroendo
na terra, nos arquivos
na mente volúvel ou cansada
até que um dia
trilhões de milênios antes do Juízo Final
não reste em qualquer átomo
nada de uma hipótese de existência.




(Drummond frente e verso. Rio de Janeiro: Edições Alumbramento, 1989. p 75)





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segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Contrição





     Bem que eu desejaria entender tanto de poesia como certos críticos, mas aí, então, não conseguiria fazer um único verso...

Mario Quintana (Caderno H, p 175)





Citando Clarice Lispector...


Não, não é fácil escrever. 
É duro como quebrar rochas.
Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados.

Fonte: www.simplesmente-clarice.blogspot.com




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domingo, 23 de outubro de 2011

Encontro mágico




     Eis que encontro na rua uma das moças mais lindas do mundo.
     Vestida simplesmente, parecia no entanto uma princesa
     Um meigo olhar, um sorriso que parecia uma aurora dentro de nós.
     Não pude, não pude mais e lhe indaguei de súbito:
     "Como é teu nome, minha querida?"
     E ela respondeu-me: AUSÊNCIA.

     Mario Quintana (Velório sem defunto, p 51)





Citando Cecília Meireles... 

Recordação


AGORA, o cheiro áspero das flores
leva-me os olhos por dentro de suas pétalas.

Eram assim teus cabelos;
tuas pestanas eram assim, finas e curvas.

As pedras limosas, por onde a tarde ia aderindo,
tinham a mesma exalação de água secreta,
de talos molhados, de pólen,
de sepulcro e de ressurreição.

E as borboletas sem voz
dançavam assim veludosamente.

Restitui-te na minha memória, por dentro das flores!
Deixa virem teus olhos, como besouros de ônix,
tua boca de malmequer orvalhado,
e aquelas tuas mãos dos inconsoláveis mistérios,
com suas estrelas e cruzes,
e muitas coisas tão estranhamente escritas
nas suas nervuras nítidas de folha,
- e incompreensíveis, incompreensíveis.


(Cecília Meireles - Seleta em prosa e verso. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1973. p 51)







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domingo, 16 de outubro de 2011

A bem-amada na praia


      Sua bundinha
     Deixou na areia
     A forma exata
     De um coração!

     Mario Quintana (Preparativos de viagem, p 137)




Citando Vinicius de Moraes... 

Receita de mulher


As muito feias que me perdoem 
Mas beleza é fundamental. É preciso 
Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso 
Qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture 
Em tudo isso (ou então 
Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular Chinesa). 
Não há meio-termo possível. É preciso 
Que tudo isso seja belo. É preciso que súbito 
Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto 
Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora. 
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche 
No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso
Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas 
Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços 
Alguma coisa além da carne: que se os toque 
Como o âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos 
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro 
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e 
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem 
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, então 
Nem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma boca 
Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência. 
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos 
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar as pernas, e as pontas pélvicas 
No enlaçar de uma cintura semovente. 
Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras 
É como um rio sem pontes. Indispensável 
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida 
A mulher se alteia em cálice, e que seus seios 
Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca 
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas. 
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebal 
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal! 
Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um certo volume de coxas 
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem 
No entanto sensível à carícia em sentido contrário. 
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio 
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!) 
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos 
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão 
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre 
Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos 
Discretos. A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso e na face 
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior 
A 37º centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras 
Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes 
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da terra; e 
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão 
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta 
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros. 
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que se se fechar os olhos 
Ao abri-los ela não mais estará presente 
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá 
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber 
O fel da dúvida. Oh, sobretudo 
Que ela não perca nunca, não importa em que mundo 
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade 
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma 
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre 
O impossível perfume; e destile sempre 
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto 
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina 
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição 
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.


Fonte: www.viniciusdemoraes.com.br











Imagem: Dorival Caymmi ("Mulher na praia")

domingo, 9 de outubro de 2011

Catástrofe



    O meu esporte único é a luta corpo a corpo com o meu  Anjo da Guarda.
    Lutamos tanto pelo que queremos
    Que no final ficaremos redondamente mortos no chão,
    Para maior alívio de Nosso Senhor,
    Para sempre livre de nós dois!

    Mario Quintana (Velório sem defundo, p 149)




Citando Florbela Espanca... 

Alma perdida


Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma da gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!

Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente...
Talvez sejas a alma, a alma doente
Dalguém que quis amar e nunca amou!

Toda a noite choraste... e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!

Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras minh'alma
Que choraste perdida em tua voz!...

Fonte: (Sonetos Forbela Espanca. Lisboa: Biblioteca Ulisseia de autores portugueses, 1990. p 50)








Imagem: www.deviantart.com

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Mudança de temperatura




     Nos fios telegráficos pousaram uma, duas, três, quatro andorinhas.
     Olham de um lado e de outro... Irão partir?
     Sobre as cercas rasas do arrabalde, os girassóis espiam como girafas...

    Mario Quintana (Sapato florido, p 92)




  Citando Lu Tostes...


  Saudosismo
  (para Mario Quintana)



   Tenho saudades dos fios telegráficos, 
   que nunca vi,
   entregando-se à poesia de andorinhas
   e ao olhar contemplativo
   dos girassóis a os espiar.


   Não pertencemos a este mundo.
   Vimos de eras amareladas,
   timidamente iluminadas,
   fruto de um passado,
   que não passou.


   Nascemos do tempo 
   canceriano de nostalgia,
   em que tudo andava mais lento
   e o único a se apressar...
   era o vento.


   





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