sábado, 2 de março de 2013

A nossa canção de roda





        A nossa canção de roda
        tinha nada e tinha tudo
        como a voz dos passarinhos

        - mas que será que dizia?

        A nossa canção de roda
        era boba como a lua.
        Mas a roda dispersou-se
        cada qual perdeu seu par...
        Agora,
        nossos fantasmas meninos
        talvez a cantem na lua...
        talvez que junto a algum leito
        a morte a esteja a cantar
        como quem nana um filhinho...
        A nossa canção de roda
        tinha nada e tinha tudo:
        era
        uma girândola de vozes
        chispando
        mais lindas do que as estrelas
        era uma fogueira acesa
        para enganar o medo, o grande medo
        que a Noite sentia
        da sua própria escuridão.

        Mario Quintana (Baú de espantos, p 70)



  Citando Cecília Meireles... 


  Reinvenção
  
   A vida só é possível
   reinventada.

   Anda o sol pelas campinas
   e passeia a mão dourada
   pelas águas, pelas folhas...
   Ah! Tudo bolhas
   que vêm de fundas piscinas
   de ilusionismo... - mais nada.

   Mas a vida, a vida, a vida,
   a vida só é possível
   reinventada.

   Vem a lua, vem, retira
   as algemas dos meus braços.
   Projeto-me por espaços
   cheios da tua Figura.
   Tudo mentira! Mentira
   da lua, na noite escura.

   Não te encontro, não te alcanço...
   Só - no tempo equilibrada,
   desprendo-me do balanço
   que além do tempo me leva.
   Só - na treva,
   fico: recebida e dada.

   Porque a vida, a vida, a vida,
   a vida só é possível
   reinventada.

(Cecília de bolso - uma antologia poética. Porto Alegre: L&PM,2010. p 56)




sábado, 29 de setembro de 2012

Brasa dormida





   Da minha vida, o que eu me lembro
   É uma
   Sucessão de janelas fechadas
   Nalgum país de sonho...

   Apago-me, suponho,
   Como as luzes de uma festa.

   Ah! uma coisa resta,
   Misterioso reflexo no escuro:

   Teus lábios úmidos como frutos mordidos!

   Mario Quintana (Preparativos de viagem, p. 131)





 Citando Fernando Pessoa...


    FOI UM momento
   O em que pousaste
   Sobre o meu braço,
   Num movimento
   Mais de cansaço
   Que pensamento,
   A tua mão 
   E a retiraste.
   Senti ou não?

   Não sei. Mas lembro
   E sinto ainda
   Qualquer memória
   Fixa e corpórea
   Onde pousaste
   A mão que teve
   Qualquer sentido
   Incompreendido,
   Mas tão de leve!...

   Tudo isto é nada,
   Mas numa estrada
   Como é a vida
   Há muita coisa 
   Incompreendida...

   Sei eu se quando
   A tua mão
   Senti pousando
   Sobre o meu braço,
   E um pouco, um pouco,
   No coração,
   Não houve um ritmo
   Novo no espaço?

   Como se tu
   Sem o querer,
   Em mim tocasses
   Para dizer
   Qualquer mistério,
   Súbito e etéreo,
   que nem soubesses
   Que tinha ser.

   Assim a brisa
   Nos ramos diz
   Sem o saber
   Uma imprecisa
   Coisa feliz.


(Mensagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. p 228)








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sábado, 14 de julho de 2012

Velha história




     Era uma vez um homem que estava pescando, Maria. Até que apanhou um peixinho! Mas o peixinho era tão pequenininho e inocente e tinha um azulado tão indescritível nas escamas que o homem ficou com pena. E retirou cuidadosamente o anzol e pincelou com iodo a garganta do coitadinho. Depois guardou-o no bolso traseiro das calças, para que o animalzinho sarasse no  quente. E desde então ficaram inseparáveis. Aonde o homem ia, o peixinho o acompanhava, a trote, que nem um cachorrinho. Pelas calçadas. Pelos elevadores. Pelos cafés. Como era tocante vê-los no "17"! - o homem, grave, de preto, com uma das mãos segurando a xícara de fumegante moca, com a outra lendo o jornal, com a outra fumando, com a outra cuidando o peixinho, enquanto este, silencioso e levemente melancólico, tomava laranjada por um canudinho especial...
     Ora, um dia o homem e o peixinho passeavam à margem do rio, onde o segundo dos dois fora pescado. E eis que os olhos do primeiro se encheram de lágrimas. E disse o homem ao peixinho:
     "Não, não me assiste o direito de te guardar comigo. Por que roubar-te por mais tempo ao carinho do teu pai, da tua mãe, dos teus irmãozinhos, da tua tia solteira? Não, não e não! Volta para o seio da tua família. E viva eu cá na terra sempre triste!...”
              Dito isto, verteu copioso pranto e, desviando o rosto, atirou o peixinho n’água. E a água fez um redemoinho, que foi depois serenando, serenando... até que o peixinho morreu afogado...

Mario Quintana (Antologia Poética, p.43)








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domingo, 8 de julho de 2012

Um pé depois do outro




          Será do tempo? Será do quê? Os meus sapatos rincham, os meus sapatos cantam de alegria. E eu vou andando e aguardando cá de cima - que o seu oculto motivo chegue afinal até meu coração.

Mario Quintana (Caderno H, p 276)





Citando Cecília Meireles... 


Transformação do dançarino
  
Nasce da sombra o dançarino,
de um ovo de seda e mistério.
E seu perfil é transparente
e sua carne é a de um inseto.


E eu o amo como às borboletas,
à asa das libélulas, e erro
no seu mundo sem solo, reino
que se vai tornando sidéreo.


Suas tênues mãos nada tocam,
e olha entre verdes águas, cego.
Cada posição de seu corpo
é um símbolo instantâneo e hermético.


Toma nos lábios o silêncio
e é um peixe bebendo o mar, quieto.
Gira e, súbito se divide,
como espelho que cai de um prego.


(Poesias Completas de Cecília Meireles, Volume II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973. p 172)




 


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sexta-feira, 8 de junho de 2012

Quem ama inventa




    Quem ama inventa as coisas a que ama...
    Talvez chegaste quando eu te sonhava.
    Então de súbito acendeu-se a chama!
    Era a brasa dormida que acordava...
    E era um revôo sobre a ruinaria,
    No ar atônito bimbalhavam sinos,
    Tangidos por uns anjos peregrinos
    Cujo dom é fazer ressurreições...
    Um ritmo divino? Oh! Simplesmente
    O palpitar de nossos corações
    Batendo juntos e festivamente,
    Ou sozinhos, num ritmo tristonho...
    Oh! meu pobre, meu grande amor distante,
    Nem sabes tu o bem que faz à gente
    Haver sonhado... e ter vivido o sonho!

    Mario Quintana (A cor do invisível, p 58)





Citando Fabrício Carpinejar...


Não é nenhum grande ato que desperta o amor, não é um heroísmo, uma atitude exemplar, um feito impressionante.

 O que faz um homem amar uma mulher e uma mulher amar o homem é tão pessoal, que é possível passar uma vida inteira sem desvendar o motivo. Não é necessário ter consciência para ser feliz. Não é fundamental entender para amar. Mas é mais bonito.

 Fico me perguntando o que inspirou minha confiança na Cínthya. Qual foi a delicadeza que ela cometeu a ponto de me viciar no convívio? O que realizou no começo do relacionamento que mexeu comigo e não quis mais abandoná-la?

O que ela aprontou de errado que deu tão certo? O que me pôs a repeti-la um dia atrás do outro sem cansar? O que me seduziu de tal forma, que entrei uma vez em sua casa com uma mochila e voltei com uma mala?

Talvez tenha sido sua simplicidade. Eu me impressiono com o que é espontâneo. Não havia quadros em suas paredes, nem estantes. A única coisa que estava de pé era o violão. Aquilo me emocionou: a música de sentinela. Ela brincou:

– O violão é meu confidente, meu melhor amigo.

Inventei de dedilhar as cordas para descobrir logo seus segredos, só que desafinei e ri envergonhado. Não estava maduro para o mistério, não merecia ainda suas lembranças, dependia de mais cumplicidade.

Mas não foi isso, ou somente isso, sempre tem algo que se soma.

Acho que ela travou meu olhar na hora em que passeávamos de carro pela orla do Guaíba. Estreava na rádio a canção Janta, de Marcelo Camelo e Mallu Magalhães.

“Eu ando em frente por sentir vontade...”

Cínthya cantava sem conhecer a letra. Aprendia a letra enquanto cantava. Longe do medo da gafe. Em voz alta, errando, tropeçando, gravando o refrão. Completava os trechos que não entendia com melodia e dirigia as rimas até o fim. Descobri que ela tinha coragem. Não iria temer um desafio. Mesmo que fosse complicado como eu.

Pensando bem, me rendi no café da manhã. Quando ela me ofereceu um saco de bolachas doces do bairro Liberdade. Eu peguei as redondas, perfeitas, para explodi-las com exclusividade em meus dentes.

Ela não; ciscou os farelos. Optou pelas bolachas partidas. Do fundo, recolhia os pequenos retângulos, triângulos, quadrados desiguais. Compadecida do pouco, enamorada da miudeza.

Um gesto silencioso que me cativou. Cuidava de mim já na primeira manhã juntos. Comia as quebradas para me deixar as inteiras. Havia cinco ou seis bolachas intactas:

– Toma, por favor...

Reprisando nossa vida, ela avisou, naquele momento, que nunca partiria meu coração.


Fonte: www.carpinejar.blogspot.com.br 







PS: Minha admiração e sinceros agradecimentos ao atencioso Carpinejar.


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sábado, 26 de maio de 2012

De repente




        Olho-te espantado:
        Tu és uma Estrela do Mar.
        Um minério estranho.
        Não sei...

        No entanto,
        O livro que eu lesse,
        O livro na mão.
        Era sempre o teu seio!

        Tu estavas no morno da grama,
        Na polpa saborosa do pão...

        Mas agora encheram-se de sombra os cântaros

        E só o meu cavalo pasta na solidão.

        Mario Quintana (O aprendiz de feiticeiro, p 23)




  Citando Fernando Pessoa... 

     Sou um guardador de rebanhos.
    O rebanho é os meus pensamentos.
    E os meus pensamentos são todos sensações.
    Penso com os olhos e com os ouvidos
    E com as mãos e os pés
    E com o nariz e a boca.


    Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
    E comer um fruto é saber-lhe o sentido.


    Por isso quando num dia de calor
    Me sinto triste de gozá-lo tanto.
    E me deito ao comprido na erva,
    E fecho os olhos quentes,
    sinto todo meu corpo deitado na realidade,
    Sei a verdade e sou feliz.


      (O Eu profundo e os outros Eus (seleção poética). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. p 146)








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