quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Mudança de temperatura




     Nos fios telegráficos pousaram uma, duas, três, quatro andorinhas.
     Olham de um lado e de outro... Irão partir?
     Sobre as cercas rasas do arrabalde, os girassóis espiam como girafas...

    Mario Quintana (Sapato florido, p 92)




  Citando Lu Tostes...


  Saudosismo
  (para Mario Quintana)



   Tenho saudades dos fios telegráficos, 
   que nunca vi,
   entregando-se à poesia de andorinhas
   e ao olhar contemplativo
   dos girassóis a os espiar.


   Não pertencemos a este mundo.
   Vimos de eras amareladas,
   timidamente iluminadas,
   fruto de um passado,
   que não passou.


   Nascemos do tempo 
   canceriano de nostalgia,
   em que tudo andava mais lento
   e o único a se apressar...
   era o vento.


   





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sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Poesia e emoção


     O palavrão é a mais espontânea forma de poesia. Brota no fundo d'alma e maravilhosamente ritmada. Se isto indigna o leitor e ele solta sem querer uma daquelas, veja o belo verso que lhe saiu, com as características do próprio: ritmo e emoção - sem o que, meu caro senhor, não há poesia. Escute, não perca discussão de rua, especialmente entre comadres italianas, e se verá então em plena poesia dramática de empalidecer de inveja o maravilhoso e refinado Racine, mas não o bárbaro Shakespeare, igualmente maravilhoso, embora destrambelhado de boca.
           Por isso é que não nos toca a poesia feita a frio, de fora para dentro, mas a que nos surge do coração como um grito, seja de amor, de dor, de ódio, espanto ou encantamento.

Mario Quintana (A vaca e o hipogrifo, p 144)








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terça-feira, 13 de setembro de 2011

Da primeira vez...



     Da primeira vez em que me assassinaram
     Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
     Depois, de cada vez que me mataram,
     Foram levando qualquer coisa minha...

     E hoje, dos meus cadáveres, eu sou
     O mais desnudo, o que não tem mais nada...
     Arde um toco de vela, amarelada...
     Como o único bem que me ficou!

     Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!
     Ah! desta mão, avaramente adunca,
     Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!

     Aves da Noite! Asas do Horror! Voejai!
     Que a luz, trêmula e triste como um ai,
     A luz de um morto não se apaga nunca!

     Mario Quintana (Antologia Poética, p 19)








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sábado, 10 de setembro de 2011

Primavera



     A primavera é a estação dos risos etc. etc. Mal treme a brisa e mal palpita o lago. Mas de que brisa me hablas, Casemiro? É vento, é chuva - é isto!
     Ah, pelo que vocês dizem e pelo que se vê, a primavera é apenas uma licença poética...

Mario Quintana (Porta giratória, p 26)








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sábado, 3 de setembro de 2011

VIII

(para Dyonelio Machado)



   Recordo ainda... E nada mais me importa...
   Aqueles dias de uma luz tão mansa
   Que me deixavam, sempre, de lembrança,
   Algum brinquedo novo à minha porta...

   Mas veio um vento de Desesperança
   Soprando cinzas pela noite morta!
   E eu pendurei na galharia torta
   Todos os meus brinquedos de criança...

   Estrada afora após eu segui... Mas, ai,
   Embora idade e senso eu aparente,
   Não vos iluda o velho que aqui vai:

   Eu quero meus brinquedos novamente!
   Sou um pobre menino... acreditai...
   Que envelheceu, um dia, de repente!...

   Mario Quintana (A  rua dos Cataventos, p 26)







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quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Frustração



     Outono: essas folhas que tombam na água parada dos tanques e não podem sair viajando pelas correntes do mundo...

Mario Quintana (Caderno H, p 81)




Citando Florbela Espanca... 

Outonal


Caem as folhas mortas sobre o lago!
Na penumbra outonal, não sei quem tece
As rendas do silêncio... Olha, anoitece!
- Brumas longínquas do País Vago...


Veludos a ondear... Mistério mago...
Encantamento... A hora não esquece,
A luz que a pouco e pouco desfalece,
Que lança em mim a bênção dum afago...


Outono dos crepúsculos doirados,
De púrpuras, damascos e brocados!
- Vestes a Terra inteira de esplendor!


Outono das tardinhas silenciosas,
Das magníficas noites voluptuosas
Em que soluço a delirar de amor...


Sonetos. Biblioteca Ulisseia de autores portugueses. p 106








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