sábado, 18 de dezembro de 2010

Branca


Ela era quase incolor: branca, branca,
de um branco que não se usa mais...
Mas tinha a alma furta-cor!

Mario Quintana (A vaca e o hipogrifo, p 52)












Óculos lilás


Quando ela entrou, eu, cujos pensamentos vagavam em algum lugar perdido por aí, pensei: só mesmo uma criança se permite usar calça verde e óculos lilás. Como eles não combinavam! Aliás, não combinavam com nada que estava ali.
Destoavam das pessoas sérias, presas ao cumprimento de suas obrigações, destoavam do ambiente austero, mas principalmente das linhas amarelas pintadas no chão, uma de cada lado, que nos mostravam exatamente onde estar, como ficar, para onde ir.
Ela chegou e sequer quis ficar no local esperado. Serpenteou a fila com andar de rainha, uma imensa altivez inocente, desconsiderando todos que aguardavam, inclusive eu.
A quebra do "protocolo" provocou alguns sorrisos, mas o que mais me chamou a atenção foi como as pessoas olhavam para aquela menina, de cabelos lisos, curtos, com largo sorriso despretensioso, belo vestido florido com calça verde e portadora de Síndrome de Down.
Todos aqueles olhares... extremamente pensativos, agradecendo a Deus por não fazer parte daquela história, bem como constatando, com estranheza, que ela, apesar de tudo, parecia feliz. Como seria isso possível?
Eu me limitei a fitá-la e sorrir, percebendo como ela era absurdamente livre. Podia fazer aquilo que quisesse e sentir o que fosse possível... Tudo isso me parecia irresistível! E eu a invejei por alguns instantes.
De tão livre que era, aproveitava-se dessa condição com perfeição... Tantas vezes foram as que ouvimos a mãe chamar por seu nome. Fernanda era o nome dela, que ecoava por todo salão.
Literalmente colocou cada um em seu devido lugar, segurando pelas pernas de um, empurrando o outro, que se esquecia de andar, até parar bem na minha frente. Puxou minha mão e se pôs ao meu lado, enquanto me mostrava a luz do seu tênis, que não parava de piscar a cada movimento.
De repente enlaçou minhas pernas em um longo e inesperado abraço... o abraço... até que começamos a brincar. Giramos alheias ao mundo e experimentamos a sensação de dançar bem ali.
Eu me esqueci de absolutamente tudo, inclusive de possíveis olhares de julgamento. Bastou-me ser e estar. Ser leve e estar rodopiando e cantarolando até ficar tonta...
Despertei, com surpresa, alguns sorrisos de cumplicidade, enquanto, para minha felicidade, Fernanda me dava uma das lições mais importantes: não levar a vida tão a sério.
Impressionante como aqueles óculos lilás combinaram exatamente com minha blusa cor de uva... eles foram capazes de ver o que estava além, um colorido especial na vida...
E aquela menininha, tão bonitinha, não imagina todo o bem que me fez... quando me lembrou de como usar meus óculos cor de laranja, só para redescobrir as cores que andavam tão esquecidas... que ela, com a mais linda sutileza, apareceu em meu caminho só para me mostrar.
Por tudo isso eu me pergunto: não é assim que um anjo deve ser? Bom saber que eles andam por aí. Naquele dia, naquele lugar, bem naquela rua... acho que encontrei o meu.
Lu.

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