"Dai-me a alegria / Do poema de cada dia. / E que ao longo do caminho / Às almas eu distribua / Minha porção de poesia" (Mario Quintana - A cor do invisível. São Paulo: Globo, 2005. p 142)

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011
Pequeno poema de após chuva
Frescor agradecido de capim molhado
Como alguém que chorou
E depois sentiu uma grande, uma quase envergonhada alegria
Por ter a vida
Continuado...
Mario Quintana (Baú de espantos, p 74)
Imagem: www.weheartit.com
quarta-feira, 7 de dezembro de 2011
Meu bonde passa pelo mercado
O que há de bom mesmo não está à venda,
O que há de bom não custa nada.
Esse momento é a flor da eternidade!
Minha alegria aguda até o grito...
Não essa alegria alvar das novelas baratas,
Pois minha alegria inclui também minha tristeza - a nossa
Tristeza...
Meu companheiro de viagem, sabes?
Todos os bondes vão para o Infinito!
Mario Quintana (Preparativos de viagem, p 71)
Citando Fernando Pessoa...
Se sou alegre ou sou triste?
Se sou alegre ou sou triste?...
Francamente, não o sei.
A tristeza em que consiste?
Da alegria o que farei?
Não sou alegre nem triste.
Verdade, não sei que sou.
Sou qualquer alma que existe
E sinto o que Deus fadou.
Afinal, alegre ou triste?
Pensar nunca tem bom fim...
Minha tristeza consiste
Em não saber bem de mim...
Mas a alegria é assim.
Imagem: www.weheartit.com
sexta-feira, 25 de novembro de 2011
A pedra e o grito
Há cerca de mais de cinqüenta anos foi para nós uma lição de poesia aquele poema da pedra no meio do caminho. Pelo seu despojamento. Pela sua expressividade. Por si mesmo, sem mais explicações.
Ah! era um encanto e um gozo, na verdade vos digo, primeiro pela indiferença a todos os cânones e depois pela cara com que ficavam os canônicos.
Nem foi por outro motivo que eu disse, em resposta a inquérito, que aquela pedra foi um marco histórico na poesia brasileira. Desde então, como depois da bomba atômica, nunca mais fomos os mesmos.
Teria inaugurado uma arte poética?
Nada disso. Seria o cúmulo que aquele impacto de liberdade criadora nos escravizasse a mais uma escola.
Sim, meninos, vamos gazear todas as escolas! Nem todos sabem como isso faz bem...
E agora, no ano em que se está festejando o sesquicentenário do grito do Ipiranga, vem muito a propósito proclamarmos - também - que poesia é independência ou morte.
Mas quem diria que o Carlos Drummond, que lançou o grito daquela pedra, está completando terça feira 70 anos? Ninguém acredita. Que precocidade!
Pois o fato - que nada tem com data - é que ainda o vemos na pista com a mesma agilidade com que começou. De modo que os seus fiéis, impacientes, como deve estar o próprio poeta, com esse palanque comemorativo, só se lembram de dizer, para bem de todos e particular dignidade da poesia:
- Continue, Carlos, continue...
E não lhe chamemos, por favor, de coisa nenhuma: seria impróprio adjetivar um poeta tão substantivo como Carlos Drummond de Andrade.
(1972)
Citando Carlos Drummond de Andrade...
No meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedratinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
Fonte: A Magia da poesia
Imagem: Carlos Drummond de Andrade ao lado de cópia da escultura do Profeta Isaías, do Aleijadinho (final da década de 30) .
Fonte: Drummond frente e verso. Rio de Janeiro: Edições Alumbramento, 1989.
sexta-feira, 11 de novembro de 2011
Extra-terrena
(para Cecília Meireles)
Nós colhíamos flores de hastes muito longas
E cujos nomes nem ao menos conhecíamos...
E nem sequer, também, sabíamos os nossos nomes...
E para quê, se um para o outro éramos Tu, apenas...
Ou quem sabe se a morte nos houvera bordado numa tapeçaria
A que o vento emprestasse a vida por um momento?
E por isso os nossos gestos eram ondulantes como as plantas marinhas
E as nossas palavras como suspensas no vento...
Mario Quintana (Preparativos de viagem, pg 35)
Nós colhíamos flores de hastes muito longas
E cujos nomes nem ao menos conhecíamos...
E nem sequer, também, sabíamos os nossos nomes...
E para quê, se um para o outro éramos Tu, apenas...
Ou quem sabe se a morte nos houvera bordado numa tapeçaria
A que o vento emprestasse a vida por um momento?
E por isso os nossos gestos eram ondulantes como as plantas marinhas
E as nossas palavras como suspensas no vento...
Mario Quintana (Preparativos de viagem, pg 35)
Citando Cecília Meireles...
Uma flor voava
Uma flor voava.
Por mais que pareça impossível,
uma flor voava.
Uma flor amarela ia voando,
e levava ao lado o seu botão fechado.
Parecia uma jovem graciosa,
com sua bolsinha no braço.
Voava a flor amarela,
no ar indefinido.
E nuns troncos imensos,
muito grossos, muito altos,
uns troncos cheios de crepúsculo,
como colunas no céu,
sentinelas da vida,
nuns troncos muito escuros
iam pousando enormes borboletas flácidas,
amarelas e pretas,
que decerto pousavam para sempre,
sem rumo nem poder,
amarelas e pretas, muito sinistras,
muito flácidas, muito grandes.
E a pequena flor amarela voava,
solta, levíssima,
por um rumo secreto,
de alma evadida.
(Poesias Completas de Cecília Meireles, Volume XIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p 127)
Imagem: www.weheartit.com
quarta-feira, 2 de novembro de 2011
Lili
Teu riso de vidro
desce as escadas às cambalhotas
e nem se quebra,
Lili,
meu fantasminha predileto!
Não que tenhas morrido...
Quem entra num poema não morre nunca
(e tu entraste em muitos...)
Muita gente até me pergunta
quem és... De tão querida
és talvez a minha irmã mais velha
nos tempos em que eu nem havia nascido.
És a Gabriela, a Liane, a Angelina... sei lá!
És a Bruna em pequenina
que eu desejaria acabar de criar.
Talvez sejas apenas a minha infância!
E que importa, enfim, se não existes...
Tu vives tanto, Lili! E obrigado, menina,
pelos nossos encontros, por esse carinho
de filha que eu não tive...
Mario Quintana (Esconderijos do tempo, p 78)
Citando Carlos Drummond de Andrade...
O que viveu meia hora
Nascer para não viver
só para ocupar
estrito espaço numerado
ao sol-e-chuva
que meticulosamente vai delindo
o número
enquanto o nome vai-se autocorroendo
na terra, nos arquivos
na mente volúvel ou cansada
até que um dia
trilhões de milênios antes do Juízo Final
não reste em qualquer átomo
nada de uma hipótese de existência.
(Drummond frente e verso. Rio de Janeiro: Edições Alumbramento, 1989. p 75)
só para ocupar
estrito espaço numerado
ao sol-e-chuva
que meticulosamente vai delindo
o número
enquanto o nome vai-se autocorroendo
na terra, nos arquivos
na mente volúvel ou cansada
até que um dia
trilhões de milênios antes do Juízo Final
não reste em qualquer átomo
nada de uma hipótese de existência.
(Drummond frente e verso. Rio de Janeiro: Edições Alumbramento, 1989. p 75)
Imagem: www.weheartit.com
segunda-feira, 31 de outubro de 2011
Contrição
Bem que eu desejaria entender tanto de poesia como certos críticos, mas aí, então, não conseguiria fazer um único verso...
Mario Quintana (Caderno H, p 175)
Citando Clarice Lispector...
Não, não é fácil escrever.
É duro como quebrar rochas.
Imagem: www.deviantart.com
domingo, 23 de outubro de 2011
Encontro mágico
Eis que encontro na rua uma das moças mais lindas do mundo.
Vestida simplesmente, parecia no entanto uma princesa
Um meigo olhar, um sorriso que parecia uma aurora dentro de nós.
Não pude, não pude mais e lhe indaguei de súbito:
"Como é teu nome, minha querida?"
E ela respondeu-me: AUSÊNCIA.
Mario Quintana (Velório sem defunto, p 51)
Citando Cecília Meireles...
Recordação
AGORA, o cheiro áspero das flores
leva-me os olhos por dentro de suas pétalas.
Eram assim teus cabelos;
tuas pestanas eram assim, finas e curvas.
As pedras limosas, por onde a tarde ia aderindo,
tinham a mesma exalação de água secreta,
de talos molhados, de pólen,
de sepulcro e de ressurreição.
E as borboletas sem voz
dançavam assim veludosamente.
Restitui-te na minha memória, por dentro das flores!
Deixa virem teus olhos, como besouros de ônix,
tua boca de malmequer orvalhado,
e aquelas tuas mãos dos inconsoláveis mistérios,
com suas estrelas e cruzes,
e muitas coisas tão estranhamente escritas
nas suas nervuras nítidas de folha,
- e incompreensíveis, incompreensíveis.
(Cecília Meireles - Seleta em prosa e verso. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1973. p 51)
Imagem: www.weheartit.com
domingo, 16 de outubro de 2011
A bem-amada na praia
Sua bundinha
Deixou na areia
A forma exata
De um coração!
Mario Quintana (Preparativos de viagem, p 137)
Citando Vinicius de Moraes...
Receita de mulher
As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental. É preciso Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso
Qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture
Em tudo isso (ou então
Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular Chinesa).
Não há meio-termo possível. É preciso
Que tudo isso seja belo. É preciso que súbito
Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche
No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso
Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas
Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços
Alguma coisa além da carne: que se os toque
Como o âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, então
Nem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma boca
Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar as pernas, e as pontas pélvicas
No enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras
É como um rio sem pontes. Indispensável
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
A mulher se alteia em cálice, e que seus seios
Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebal
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um certo volume de coxas
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem
No entanto sensível à carícia em sentido contrário.
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!)
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre
Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos
Discretos. A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso e na face
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior
A 37º centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras
Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da terra; e
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que se se fechar os olhos
Ao abri-los ela não mais estará presente
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber
O fel da dúvida. Oh, sobretudo
Que ela não perca nunca, não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre
O impossível perfume; e destile sempre
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.
Fonte: www.viniciusdemoraes.com.br
Imagem: Dorival Caymmi ("Mulher na praia")
domingo, 9 de outubro de 2011
Catástrofe
O meu esporte único é a luta corpo a corpo com o meu Anjo da Guarda.
Lutamos tanto pelo que queremos
Que no final ficaremos redondamente mortos no chão,
Para maior alívio de Nosso Senhor,
Para sempre livre de nós dois!
Mario Quintana (Velório sem defundo, p 149)
Citando Florbela Espanca...
Alma perdida
Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma da gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!
Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente...
Talvez sejas a alma, a alma doente
Dalguém que quis amar e nunca amou!
Toda a noite choraste... e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!
Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras minh'alma
Que choraste perdida em tua voz!...
Fonte: (Sonetos Forbela Espanca. Lisboa: Biblioteca Ulisseia de autores portugueses, 1990. p 50)
Imagem: www.deviantart.com
quinta-feira, 29 de setembro de 2011
Mudança de temperatura
Nos fios telegráficos pousaram uma, duas, três, quatro andorinhas.
Olham de um lado e de outro... Irão partir?
Sobre as cercas rasas do arrabalde, os girassóis espiam como girafas...
Mario Quintana (Sapato florido, p 92)
Citando Lu Tostes...
Saudosismo
(para Mario Quintana)
Saudosismo
(para Mario Quintana)
Tenho saudades dos fios telegráficos,
que nunca vi,
entregando-se à poesia de andorinhas
e ao olhar contemplativo
dos girassóis a os espiar.
Não pertencemos a este mundo.
Vimos de eras amareladas,
timidamente iluminadas,
fruto de um passado,
que não passou.
Nascemos do tempo
canceriano de nostalgia,
em que tudo andava mais lento
e o único a se apressar...
era o vento.
que nunca vi,
entregando-se à poesia de andorinhas
e ao olhar contemplativo
dos girassóis a os espiar.
Não pertencemos a este mundo.
Vimos de eras amareladas,
timidamente iluminadas,
fruto de um passado,
que não passou.
Nascemos do tempo
canceriano de nostalgia,
em que tudo andava mais lento
e o único a se apressar...
era o vento.
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