segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

As bruxas de pano




    As bruxas de pano
    tão maternalmente embaladas
    pelas menininhas pobres
    são muito mais belas
    do que as bonecas suntuosas como princesas
    - orgulho das vitrinas...
    Essas humildes bruxas de pano
    com seus olhinhos de conta
    suas bocas tão mal desenhadas a tinta
    são muito mais belas porque mais amadas!

    Mario Quintana (A cor do invisível, p 44)



      Imagem: www.deviantart.com

domingo, 27 de fevereiro de 2011

O mundo de Deus




     Aquele astronauta americano que anunciou ter encontrado Deus na lua é no fim das contas menos simplório do que os primeiros astronautas russos, os quais declararam, ao voltar, não terem visto Deus no céu.
     Porque, se Deus é paz e paz é silêncio afinal, deve Ele estar mesmo muito mais na lua do que nas metrópoles terrenas.
     E, pelo que me toca, a verdade é que nunca pude esquecer estas palavras de um personagem de Balzac:
     "O deserto é Deus sem os homens."

Mario Quintana ( Caderno H, p 63)







Imagem: www.deviantart.com

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Caligrafias


  
  Delícia de olhar, no céu, os v v v dos vôos distanciando-se...

Mario Quintana (A vaca e o hipogrifo, p 290)







Imagem: Nancy Werner

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Primavera



   As águas riem como raparigas
   À sombra verde-azul das samambaias!

    Mario Quintana (A cor do invisível, p 29)








Imagem: Claude Monet ("Vitórias régias e chorões em lago", 1916)

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Da relativa realização




Mover-se com a máxima amplitude dentro dos próprios limites.

Mario Quintana (Caderno H, p 259)






Citando Ana Jácomo...


Reencontro

Eu vim aqui me buscar. E aqui parecia ser longe, muito longe do lugar onde eu estava, o medo costuma ver as distâncias com lente de aumento. Vim aqui me buscar porque a insatisfação me perguntava incontáveis vezes o que eu iria fazer para transformá-la e chegou um momento em que eu não consegui mais lhe dizer simplesmente que eu não sabia. Vim aqui me buscar porque cansei de fazer de conta que eu não tinha nenhuma responsabilidade com relação ao padrão repetitivo da maioria das circunstâncias difíceis que eu vivenciava. Vim aqui me buscar porque a vida se tornou tediosa demais. Opaca demais. Cansativa demais. Encolhida.

Vim aqui me buscar porque, para onde quer que eu olhasse, eu não me encontrava. Porque sentia uma saudade tão grande que chegava a doer e, embora persistisse em acreditar que ela reclamava de outras ausências, a verdade é que o tempo inteirinho ela falava da minha falta de mim. Vim aqui me buscar porque percebi que estava muito distante e que a prioridade era eu me trazer de volta. Isso, se quisesse experimentar contentamento. Se quisesse criar espaço, depois de tanto aperto. Se quisesse sentir o conforto bom da leveza, depois de tanto peso suportado. Se quisesse crescer no amor.

Vim aqui me buscar, com medo e coragem. Com toda a entrega que me era possível. Com a humildade de quem descobre se conhecer menos do que supunha e com o claro propósito de se conhecer mais. Vim aqui me buscar para varrer entulhos. Passar a limpo alguns rascunhos. Resgatar o viço do olhar. Trocar de bem com a vida. Rir com Deus, outra vez. Vim aqui me buscar para não me contentar com a mesmice. Para dizer minhas flores. Para não me surpreender ao me flagrar feliz. Para ser parecida comigo. Para me sentir em casa, de novo.

Vim aqui me buscar. Aqui, no meu coração.







Imagem: Interesno

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O berço e o terremoto



     Os versos, em geral, são versos de embalar, como eu às vezes os tenho feito, não sei se por simples complacência... ou pura piedade.
     Contudo, os verdadeiros versos não são para embalar - mas para abalar.
     Mesmo a  mais simples canção,  quando a canta  um Garcia Lorca,  desperta-te a  alma para um mundo de espanto.

Mario Quintana (Caderno H, p 287)




Citando Federico Garcia Lorca...

As seis cordas

A guitarra

faz soluçar os sonhos.
O soluço das almas 
perdidas
foge por sua boca
redonda.
E, assim como a tarântula,
tece uma grande estrela
para caçar suspiros
que bóiam no seu negro
abismo de madeira.


Fonte: Projeto releituras








Imagem: www.deviantart.com

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Bebê

                                  


     Coisinha deficiente, inconsciente, inerme, inválida, trabalhosa, querida.

Mario Quintana (Caderno H, p 394)


Imagem: Kelley Ryden

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Madrigal





    Tu és a matéria plástica de meus versos, querida...
    Porque, afinal,
    Eu nunca fiz meus versos propriamente a ti:
    Eu sempre fiz versos de ti!

    Mario Quintana (Velório sem defunto, p 133)




Citando Chico Buarque... 


As vitrines
  
[...] cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão.







Imagem: www.weheartit.com

domingo, 20 de fevereiro de 2011

O leitor ideal




     O leitor ideal para o cronista seria aquele a quem bastasse uma frase.
     Uma frase? Que digo? Uma palavra!
     O cronista escolheria a palavra do dia: "Árvore", por exemplo, ou "Menina".
     Escreveria essa palavra bem no meio da página, com espaço em branco para todos os lados, como um campo aberto aos devaneios do leitor.
     Imaginem só uma meninazinha solta no meio da página.
     Sem mais nada.
     Até sem nome.
     Sem cor de vestido nem de olhos.
     Sem se saber para onde ia...
     Que mundo de sugestões e de poesia para o leitor!
     E que cúmulo de arte a crônica! Pois bem sabeis que arte é sugestão...
     E  se  o leitor  nada  conseguisse  tirar  dessa  obra-prima,  poderia  o autor  alegar,  cavilosamente,  que  a culpa não era do cronista.
     Mas nem tudo estaria perdido para esse hipotético leitor fracassado, porque ele teria sempre à sua disposição, na página, um considerável espaço em branco para tomar os seus apontamentos, fazer os seus cálculos ou a sua fezinha...
     Em todo caso, eu lhe dou de presente, hoje, a palavra "Ventania". Serve?

Mario Quintana (Porta giratória, p 74)



Imagem: Anita Malfatti ("A ventania", 1915-17)

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Poema chinês




    O vento, o rio, a estrada, os joelhos, o riso,
    Com isso
    Poderias compor 999 poemas...
    Mas basta compor um filho.

    Mario Quintana (A cor do invisível, p 141)








Imagem: petitefamillegouny.blogspot.com

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Receita



     No dia em que estiveres muito cheio de incomodações, imagina que morreste anteontem... Confessa: tudo aquilo teria mesmo tanta importância?

Mario Quintana (Porta giratória, p 145)



Imagem: www.deviantart.com

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Poeminha do Contra




    Todos esses que aí estão
    Atravancando o meu caminho,

    Eles passarão...
    Eu passarinho!

    Mario Quintana (Caderno H, p 107)







Imagem: www.deviantart.com

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Botânica




Os girassóis parecem flores de retórica.

Mario Quintana (Caderno H, p 335)




Citando Caio Fernando Abreu... 


     Girassol quando abre flor, geralmente despenca. O talo é frágil demais para a própria flor, compreende? Então, como se não suportasse a beleza que ele mesmo engendrou, cai por terra, exausto da própria criação esplêndida. Pois conheço poucas coisas mais esplêndidas, o adjetivo é esse, do que um girassol aberto.
     
Fonte: Querida Suzi em flor...





terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

O baú



    Como estranhas lembranças de outras vidas,
    que outros viveram, num estranho mundo,
    quantas coisas perdidas e esquecidas
    no teu baú de espantos... Bem no fundo,

    uma boneca toda estraçalhada!
    (isto não são brinquedos de menino...
    alguma coisa deve estar errada)
    mas o teu coração em desatino

    te traz de súbito uma idéia louca:
    é ela, sim! Só pode ser aquela,
    a jamais esquecida Bem-Amada.

    E em vão tentas lembrar o nome dela...
    e em vão ela te fita... e a sua boca
    tenta sorrir-te mas está quebrada!

    Mario Quintana (Esconderijos do tempo, p 52)

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Canção da primavera

(para Érico Veríssimo)



    Primavera cruza o rio
    Cruza o sonho que tu sonhas.
    Na cidade adormecida
    Primavera vem chegando.

    Catavento enlouqueceu,
    Ficou girando, girando.
    Em torno do catavento
    Dancemos todos em bando.

    Dancemos todos, dancemos,
    Amadas, Mortos, Amigos,
    Dancemos todos até
    Não mais saber-se o motivo...

    Até que as paineiras tenham
    Por sobre os muros florido!

    Mario Quintana (Canções, p 25)








Imagem: www.julil.deviantart.com

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Sinônimos



     Confesso que até hoje só conheci dois sinônimos perfeitos: "nunca" e "sempre".

Mario Quintana (Caderno H, p 190)




Citando Milan Kundera... 


     Não existe  meio de verificar  qual é a boa decisão,  pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que faz com que a vida pareça sempre um esboço. No entanto, mesmo "esboço" não é a palavra certa, porque um esboço é sempre um projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro.
     Tomas repete para si mesmo o provérbio alemão: "Einmal ist keinmal", "Uma vez não conta, uma vez é nunca". Não poder viver senão uma vida é como não viver nunca.


(A insustentável leveza do ser. São Paulo: Círculo do Livro. p 11) 








Imagem: www.deviantart.com

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Cuidado!




A poesia não se entrega a quem a define.

Mario Quintana (Caderno H, p 388)

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Mundo



    E eis que naquele dia a folhinha marcava uma data em caracteres desconhecidos,
    Uma data ilegível e maravilhosa.

    Quem viria bater à minha porta?

    Ai, agora era um outro dançar, outros os sonhos e incertezas,
    Outro amar sob estranhos zodíacos...

    Outro...

    E o terror de construir mitologias novas!


    Mario Quintana (O aprendiz de feiticeiro, p 24)






Imagem: www.deviantart.com

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Os intocáveis




     A ironia atinge apenas a inteligência. Inútil desperdicá-la com os que estão longe do seu alcance. Contra estes, ainda não se conseguiu inventar nenhuma arma. A burrice é invencível.


Mario Quintana (Porta giratória, p 110)




Imagem: www.deviantart.com

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

A verdade da ficção



                                                                                           
     São Jorge, o cavalo, o dragão... eu sempre fui, já não digo um devoto, mas um fã dos três. São Jorge, eu soube, foi cassado. É verdade que andava metido em tudo o que era religião... Mas que culpa tinha ele de ser bonito e ecumênico? Porém, ao passo que São Jorge era dessantificado, ressucitava-se o Diabo, retirando-o do domínio do folclore a que o relegara o povo. Mas e o dragão? O dragão não representava o mal, isto é, o Diabo? Alega-se que São Jorge nunca existiu. Ora, naquela imagem que, de tanto a vermos desde a infância, fazia parte da nossa sensibilidade, o dragão era também uma figura simbólica. Porém existe... Naquela bela imagem, pois, resta-nos agora o cavalo e o dragão. Luta desigual. Foi-se o cavaleiro andante do Bem.
     E como que nos ficou faltando um estímulo, um exemplo, uma esperança.
     O que  nos faz lembrar aquele Outro cavaleiro andante,  Dom Quixote - outro símbolo. Que nunca existiu, é claro. Mas como vive!

Mario Quintana (A vaca e o hipogrifo, p 40)








Imagem: www.deviantart.com

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O preto



     O preto tem a vantagem de realçar as cores que o cercam sem nada perder no entanto da sua própria e grave afirmação.

Mario Quintana (Caderno H, p 132)





Recomeços

Esqueça esse rosto plástico,
esse gosto metálico,
essa lágrima contida...
Chore suas dores,
ria suas alegrias. 


Caminhe...
do peso de morrer
para depois sorver 
o ar aos pulmões.


Até que um dia
respirar se perca do grave
e se torne um movimento suave, 
feliz e involuntário.

Lu Tostes






Imagem: www.deviantart.com





segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Poema para uma exposição


                 
    O quadro na parede abre uma janela
    que dá para o outro mundo
    deste mundo...

    Um mundo isento de rumores
    e de mil flutuações atmosféricas
    - alheio a toda humana contingência...

    Onde um momento é sempre
    e o mal e o bem não têm nenhum sentido...

    Mundo
    em que forma também é a própria essência.

    Ó Vida
    Transfixada ao muro - e que palpita,
    entanto,
    num misterioso, eterno movimento!

    Mario Quintana (A cor do invisível, p 38)



      Imagem: Claude Monet ("Mulher com sombrinha", 1875)

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Canção do amor imprevisto



    Eu sou um homem fechado.
    O mundo me tornou egoísta e mau.
    E a minha poesia é um vício triste,
    Desesperado e solitário
    Que eu faço tudo por abafar.

    Mas tu apareceste com a tua boca fresca de madrugada,
    Com o teu passo leve,
    Com esses seus cabelos...

    E o homem taciturno ficou imóvel, sem compreender nada, numa alegria atônita...

    A súbita dolorosa alegria de um espantalho inútil
    Aonde viessem pousar os passarinhos!


    Mario Quintana (Canções, p 62)



Citando Fernando Pessoa... 
(sob pseudônimo de Alberto Caeiro)

O pastor amoroso 

O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma cousa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.

Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.

Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.

(10-7-1930)

Fonte: (O Eu profundo e os outros Eus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. p 167) 






Imagem: www.deviantart.com