segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

domingo, 30 de janeiro de 2011

Canção de nuvem e vento


                                
  
    Medo da nuvem
    Medo Medo
    Medo da nuvem que vai crescendo
    Que vai se abrindo
    Que não se sabe
    O que vai saindo
    Medo da Nuvem Nuvem
    Medo do vento
    Medo Medo
    Medo do vento que vai ventando
    Que vai falando
    Que não se sabe
    O que vai dizendo
    Medo do vento Vento Vento
    Medo do gesto
    Mudo
    Medo da fala
    Surda
    Que vai movendo
    Que vai dizendo
    Que não se sabe...
    Que bem se sabe
    Que tudo é nuvem que tudo é vento
    Nuvem e vento Vento Vento!

    Mario Quintana (Canções, p 35)




Citando Sophia de Mello Breyner Andresen...


Procelária

É vista quando há vento e grande vaga
Ela faz o ninho no rolar da fúria
E voa firme e certa como bala

As suas asas empresta à tempestade
Quando os leões do mar rugem nas grutas
Sobre os abismos passa e vai em frente

Ela não busca a rocha o cabo o cais
Mas faz da insegurança a sua força
E do risco de morrer seu alimento

Por isso me parece a imagem justa
Para quem vive e canta no mau tempo.








Imagem: www.deviantart.com

sábado, 29 de janeiro de 2011

Das utopias




    Se as coisas são inatingíveis... ora!
   Não é motivo para não querê-las...
   Que tristes os caminhos, se não fora
   A mágica presença das estrelas!

    Mario Quintana (Espelho mágico, p 28)





Citando Sophia de Mello Breyner Andresen...


Apesar das ruínas e da morte

Apesar das ruínas e da morte
Onde sempre acabou cada ilusão
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.


Fonte: Abrigo de pastora





sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Lembras-te?

 (Para a Eloí)



    Minha lanterna andante, meu cachorrinho de cego...
   Perdidos naquela Babilônia, nem sei bem se eras o caminho...
   Se, acaso, eras a verdade...
   Eu sei apenas que Tu és a Vida!

   Mario Quintana (A cor do invisível, p 30)




Citando Florbela Espanca...


Fanatismo

Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

"Tudo no mundo é frágil, tudo passa..."
Quando me dizem isto, toda a graça 
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:
"Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como um Deus: Princípio e Fim!"



Fonte: (Sonetos Forbela Espanca. Lisboa: Biblioteca Ulisseia de autores portugueses, 1990. p 65)




quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Liberdade condicional




    Poderás ir até a esquina
   comprar cigarros e voltar
   ou mudar-te para a China
   - só não podes sair de onde tu estás.

    Mario Quintana (A vaca e o hipogrifo, p 88)





Citando Ígor Andrade...


Gaiola invisível

Ser livre
é não estar preso
à liberdade.









Imagem: www.deviantart.com

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Rumo




     A gente deve atravessar a vida como quem está gazeando a escola e não como quem vai para a escola.

Mario Quintana (Caderno H, p 249)






terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Das indagações



     A resposta certa, não importa nada: o essencial é que as perguntas estejam certas.

Mario Quintana (Caderno H, p 157)








Imagem: www.deviantart.com

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

***


                
    Os psicanalistas, como o caso deles me preocupa!
    Eles próprios sofrem de um dos mais terríveis complexos do mundo,
    Que é o complexo dos complexos.
    Ah, se a gente pudesse ter uma simples e amistosa conversa com eles,
    Sem que descubram coisas por trás!
    E se, por acaso,
    Tombar um ovo choco no chão,
    Por que hei de ser um maníaco homicida,
    Um fabricante de anjinhos?!
    Por que não vão eles inquirir sobre isso o próprio Acaso?
    Que não sabe de nada...

    Mario Quintana (Velório sem defunto, p 145)


Imagem: www.deviantart.com

domingo, 23 de janeiro de 2011

Bilhete



   Se tu me amas, ama-me baixinho
   Não o grites de cima dos telhados
   Deixa em paz os passarinhos
   Deixa em paz a mim!
   Se me queres,
   enfim,
   tem que ser bem devagarinho, Amada,
   que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...

   Mario Quintana (Esconderijos do tempo, p 37)




sábado, 22 de janeiro de 2011

O Adolescente



    A vida é tão bela que chega a dar medo.

    Não o medo que paralisa e gela,
    estátua súbita,
    mas

    esse medo fascinante e fremente de curiosidade que faz
    o jovem felino seguir para a frente farejando o vento
    ao sair, a primeira vez, da gruta.

    Medo que ofusca: luz!

    Cumplicemente,
    as folhas contam-te um segredo
    velho como o mundo:

    Adolescente, olha! A vida é nova...
    A vida é nova e anda nua
    - vestida apenas com o teu desejo!

    Mario Quintana (Antologia Poética, p 76)







Imagem: www.deviantart.com

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Canção para uma valsa lenta


    
    Minha vida não foi um romance...
    Nunca tive até hoje um segredo.
    Se me amas, não digas, que morro
    De surpresa... de encanto... de medo...

    Minha vida não foi um romance,
    Minha vida passou por passar.
    Se não me amas, não finjas, que vivo
    Esperando um amor para amar.

    Minha vida não foi um romance...
    Pobre vida... passou sem enredo...
    Glória a ti que me enches a vida
    De surpresa, de encanto, de medo!

    Minha vida não foi um romance...
    Ai de mim... Já se ia acabar!
    Pobre vida que toda depende
    De um sorriso... de um gesto... um olhar...

    Mario Quintana (Canções, p 60)






quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Remissão




     Naquele dia fazia um azul tão límpido, meu Deus, que eu me sentia perdoado para sempre não sei de quê. 

Mario Quintana (Caderno H, p 231)





Citando Caio Fernando Abreu...


"Era de manhã bem cedo. O homem que acreditava abriu todas as janelas para o dia azul brilhante. Respirou fundo, sorriu. Ficou pensando em quem poderia convidar para ir com ele ao País das Fadas. Alguém de que gostasse muito e também acreditasse. Sorriu ainda mais quando, sem esforço, lembrou de uma porção de gente. Esse convite agora está sempre nos olhos dele: quem acredita sabe encontrar. Não garanto que foi feliz para sempre, mas o sorriso dele era lindo quando pensou todas essas coisas — ah, disso eu não tenho a menor dúvida. E você?"


Fonte: Letras e livros








Imagem: www.deviantart.com

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Alma & forma



     Dizes que a beleza não é nada? Imagina um hipopótamo com alma de anjo... Sim, ele poderá convencer alguém de sua angelitude - mas que trabalheira!

Mario Quintana (Caderno H, p 154)





terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Coisas



    Uma rãzinha verde no gris da manhã...
    Um sorriso na face de um ceguinho...
    Uma nota aguda como uma pergunta de criança...
    Um cheiro agradecido da terra molhada...
    Um olhar que nos enche subitamente de azul...

    Mario Quintana (Caderno H, p 329)





Citando Manoel de Barros...


As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis:
Elas desejam ser olhadas de azul.


Fonte: www.sonhocomestrelas.blogspot.com








Imagem: www.deviantart.com

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

O silêncio


     Convivência entre o poeta e o leitor, só no silêncio da leitura a sós. A sós, os dois. Isto é, livro e leitor. Este não quer saber de terceiros, não quer que interpretem, que cantem, que dancem um poema. O verdadeiro amador de poemas ama em silêncio...

Mario Quintana (A vaca e o hipogrifo, p 176)




Citando Ferreira Gullar...

Falar

A poesia é, de fato, o fruto
de um silêncio que sou eu, sois vós,
por isso tenho que baixar a voz
porque, se falo alto, não me escuto.

A poesia é, na verdade, uma
fala ao revés da fala,
como um silêncio que o poeta exuma
do pó, a voz que jaz embaixo
do falar e no falar se cala.
Por isso o poeta tem que falar baixo
baixo quase sem fala em suma
mesmo que não se ouça coisa alguma.




Imagem: www.deviantart.com

domingo, 16 de janeiro de 2011

Vamos avoar?



     Andávamos  por   um  caminho ao  longo  de  um  capinzal,  que o  vento  da  manhã  ondulava  a  perder de vista. Íamos a favor do vento que nos levava para a frente, sempre e sempre para a frente.
     - Vamos avoar naquela água? - propôs Lili.
     - Como?! Repete isso.
     Não  repetiu.   Essas  coisas  não  se  repetem.  A  verdade é  que  fiquei   atônito  e   agradecido.  Era  que, naquele tempo, Lili tinha cinco anos e, em matéria de cultura poética, apenas conhecia, ao que eu soubesse, certo hino que cantavam no Jardim da Infância e onde apareciam, creio que em estribilho, as harmoniosas mas inesperadas sílabas do nome do Dr. Celeste Gobato.
     Ora,  apenas com essa mostra da  poesia antiga e desconhecendo  completamente a moderna,  Lili acabava de demonstrar, com a insuspeita inocência de seu exemplo, o quanto a nova poética é por si natural.
     Como uma pequenina Mademoiselle Jourdam de saia florida e franjinha esvoaçante, estava fazendo poesia sem querer. E poesia moderna, dessa que gente grande teimava em não aceitar, devido às limitações da lógica adulta.
     Havia ali uma interpenetração das imagens - não sucessivas, não ligadas por "assim como" - e sem menção prévia do objeto que as fizera brotar. Puro Mallarmé, mas espontâneo, sem as suas custosas elaborações.
      Um poeta lógico (!) começaria assim:
      "Ondula o verde canavial ao vento"
      ("capinzal" ele não diria, não, por mal agradecidos escrúpulos cavalares.)
      "Ondula o verde canavial ao vento,
      Tal como, ao vento, ondula, verde, o mar."
      E assim por diante. Tudo bem claro, ritmado, lógico.
      Mas onde a magia daquele teu poeminho de um só verso, Lili?

Mario Quintana (Caderno H, p 348)



Imagem: www.deviantart.com

sábado, 15 de janeiro de 2011

A diferença



     O que eles chamam de nossos defeitos é o que nós temos de diferente deles. Cultivemo-los pois, com o maior carinho - esses nossos benditos defeitos.

Mario Quintana (Caderno H, p 93)




Citando Clarice Lispector...

Carta

Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual o defeito que sustenta nosso edifício inteiro... Há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma em boi. Assim fiquei eu... Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também a minha força. Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que imagina que é ruim em você - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse seu único meio de viver. Juro por Deus que, se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia ia ser punida e iria para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não é ser punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo o que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu saber. Ver o que se pode suceder quando se pactua com a comodidade da alma.





Citando Fernando Pessoa...

Sou eu

Sim, sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobresselente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.

Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.

E ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconsequente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro eléctrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.

Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.

Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
A impressão de pão com manteiga e brinquedos,
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas mortas de custar a engolir.

Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.

Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.

Sou eu mesmo, que remédio!...







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Imagem: www.deviantart.com