sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O tamanho da gente

                             
    O homem acha o Cosmos infinitamente grande
    E o micróbio infinitamente pequeno.
    E ele, naturalmente,
    Julga-se do tamanho natural...
    Mas, para Deus, é diferente:
    Cada ser, para Ele, é um universo próprio.
    E, a seus olhos, o bacilo de Koch,
    A estrela Sírius e o Prefeito de Três Vassouras
    São todos infinitamente do mesmo tamanho...

    Mario Quintana (Velório sem defunto, p 153)




Citando Ana Jácomo...

Pra quem tem olhos que escutam

Vive mais feliz quem tem olhos capazes de escutar o canto amoroso da simplicidade.
É nas miudezas que tudo aquilo que realmente importa se revela com maior nitidez.






Desejo que em 2011 brote em cada coração a luz necessária para perceber poesia em todas as pequenas-grandes coisas do mundo... 
Estejamos, então, de corações abertos e de olhos atentos.
Feliz Ano Novo a todos!
Lu

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Evolução

              
    Todas as noites o sono nos atira da beira de um cais
    e ficamos repousando no fundo do mar.
    O mar onde tudo recomeça...
    Onde tudo se refaz...
    Até que, um dia, nós criaremos asas.
    E andaremos no ar como se anda em terra.

    Mario Quintana (Esconderijos do tempo, p 55)




quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Dança


                                            

    A menina dança sozinha
    por um momento.

    A menina dança sozinha
    com o vento, com o ar, com
    o sonho de olhos imensos...

    A forma grácil de suas pernas
    ele é que as plasma, o seu par
    de ar
    de vento,
    o seu par fantasma...

    Menina de olhos imensos,
    tu, agora, paras,
    mas a mão ainda erguida

    segura ainda no ar 
    o hastil invisível
    deste poema!

    Mario Quintana (Esconderijos do tempo, p 35)




terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Sempre

                             
   Sou o dono dos tesouros perdidos no fundo do mar.
    Só o que está perdido é nosso para sempre.
    Nós só amamos os amigos mortos
    E só as amadas mortas amam eternamente...

    Mario Quintana (Antologia Poética, p 97)



segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Sinônimos

                            
     Esses que pensam que existem sinônimos, desconfio que não sabem distinguir as diferentes nuanças de uma cor.

Mario Quintana (Caderno H, p 245)

domingo, 26 de dezembro de 2010

O vento e eu

                         
    O vento morria de tédio
    Porque apenas gostava de cantar
    Mas não tinha letra alguma para a sua própria voz,
    Cada vez mais vazia...
    Tentei então compor-lhe uma canção
    Tão comprida como a minha vida
    E com aventuras espantosas que eu inventava de súbito,
    Como aquela em que menino eu fui roubado pelos ciganos
    E fiquei vagando sem pátria, sem família, sem nada neste vasto mundo...
    Mas o vento, por  isso
    Me julga agora como ele...
    E me dedica um amor solidário, profundo!

    Mario Quintana (Velório sem defunto, p 91)

sábado, 25 de dezembro de 2010

Os três Reis Magos


Um trouxe a mirra,
Outro o incenso,
Outro o ouro.
Mirra e incenso evaporam-se
E, agora,
Ainda queres saber o que foi feito do ouro?
Mas tu não sabias?! O ouro também evapora-se...

Mario Quintana (Velório sem defunto, p 63)

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Andanças e erranças


     O que os santos têm de mais sagrado são os pés. Por isso os antigos fiéis lhos beijavam. Pois os santos estáticos, esses que jamais andaram errando pelo mundo, os próprios anjos desconfiam deles...

Mario Quintana (A vaca e o hipogrifo, p 49)

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Preces


     Rezar é uma falta de fé: Nosso Senhor bem sabe o que está fazendo...

Mario Quintana (Caderno H, p 369)

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

A chuva


     O bom da chuva é que parece que não tem fim... Nenhuma das outras coisas me dá essa resignada, tranquilizadora sensação de fatalidade.

Mario Quintana (Caderno H, p 356)




terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Véspera de tempestade



  Contra um céu de chumbo
  Aquelas árvores desesperadamente verdes!

   Mario Quintana (A cor do invisível, p 121)

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Da alma


     Uma alma sem mistério nem seria alma... Da mesma forma que um Deus compreensível não seria Deus.

Mario Quintana (Caderno H, p 90)

domingo, 19 de dezembro de 2010

Explicação parcial

                                                                    
     No outro dia  escrevi  que já  tinha  passado da idade de  ler coisas sérias.  Vocês vão achar engraçadíssimo, mas aos quinze anos devorei  literalmente  Dostoiévski  e  roí com avidez canina  não sei  quantas ossadas metafísicas. Éramos assim, os da minha geração. A  gente  queria  apenas  decifrar  o  mistério da alma,  o sentido da vida, a finalidade do mundo.
     No fim, só me restou a poesia, outro enigma.
     É  que  pensei  comigo  então,  passada  aquela  enorme azia  transcendental,  se tão formidáveis  problemas,  não os  decifrou  Platão,  nem Aristóteles,  nem outros de igual tamanho...  muito menos eu, ou tu, ambicioso leitor.

Mario Quintana (Caderno H, p 291)

sábado, 18 de dezembro de 2010

Branca


Ela era quase incolor: branca, branca,
de um branco que não se usa mais...
Mas tinha a alma furta-cor!

Mario Quintana (A vaca e o hipogrifo, p 52)












Óculos lilás


Quando ela entrou, eu, cujos pensamentos vagavam em algum lugar perdido por aí, pensei: só mesmo uma criança se permite usar calça verde e óculos lilás. Como eles não combinavam! Aliás, não combinavam com nada que estava ali.
Destoavam das pessoas sérias, presas ao cumprimento de suas obrigações, destoavam do ambiente austero, mas principalmente das linhas amarelas pintadas no chão, uma de cada lado, que nos mostravam exatamente onde estar, como ficar, para onde ir.
Ela chegou e sequer quis ficar no local esperado. Serpenteou a fila com andar de rainha, uma imensa altivez inocente, desconsiderando todos que aguardavam, inclusive eu.
A quebra do "protocolo" provocou alguns sorrisos, mas o que mais me chamou a atenção foi como as pessoas olhavam para aquela menina, de cabelos lisos, curtos, com largo sorriso despretensioso, belo vestido florido com calça verde e portadora de Síndrome de Down.
Todos aqueles olhares... extremamente pensativos, agradecendo a Deus por não fazer parte daquela história, bem como constatando, com estranheza, que ela, apesar de tudo, parecia feliz. Como seria isso possível?
Eu me limitei a fitá-la e sorrir, percebendo como ela era absurdamente livre. Podia fazer aquilo que quisesse e sentir o que fosse possível... Tudo isso me parecia irresistível! E eu a invejei por alguns instantes.
De tão livre que era, aproveitava-se dessa condição com perfeição... Tantas vezes foram as que ouvimos a mãe chamar por seu nome. Fernanda era o nome dela, que ecoava por todo salão.
Literalmente colocou cada um em seu devido lugar, segurando pelas pernas de um, empurrando o outro, que se esquecia de andar, até parar bem na minha frente. Puxou minha mão e se pôs ao meu lado, enquanto me mostrava a luz do seu tênis, que não parava de piscar a cada movimento.
De repente enlaçou minhas pernas em um longo e inesperado abraço... o abraço... até que começamos a brincar. Giramos alheias ao mundo e experimentamos a sensação de dançar bem ali.
Eu me esqueci de absolutamente tudo, inclusive de possíveis olhares de julgamento. Bastou-me ser e estar. Ser leve e estar rodopiando e cantarolando até ficar tonta...
Despertei, com surpresa, alguns sorrisos de cumplicidade, enquanto, para minha felicidade, Fernanda me dava uma das lições mais importantes: não levar a vida tão a sério.
Impressionante como aqueles óculos lilás combinaram exatamente com minha blusa cor de uva... eles foram capazes de ver o que estava além, um colorido especial na vida...
E aquela menininha, tão bonitinha, não imagina todo o bem que me fez... quando me lembrou de como usar meus óculos cor de laranja, só para redescobrir as cores que andavam tão esquecidas... que ela, com a mais linda sutileza, apareceu em meu caminho só para me mostrar.
Por tudo isso eu me pergunto: não é assim que um anjo deve ser? Bom saber que eles andam por aí. Naquele dia, naquele lugar, bem naquela rua... acho que encontrei o meu.
Lu.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

I


     Não esquecer que as nuvens estão improvisando sempre, mas a culpa é do vento.

Mario Quintana (Caderno H, p 207)

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

A canção


Enquanto os teus olhos ainda estão cerrados sobre os mistérios noturnos da alma
E o dia ainda não abriu as suas pálpebras,
Nasce a canção dentro de ti como um rumor de águas,
Nasce a canção como um vento despertando as folhagens...
Não vem de súbito, vem de longe e de muito tempo.
Mas - agora - estás desperto na cidade e não sabes,
Entre tantos rumores e motores,
Como é que tens de súbito esta serenidade
De quem recebesse uma hóstia em pleno inferno.
Deve ser de versos que leste e nem te lembras,
De telas, de estátuas que viste,
De um sorriso esquecido...
E destas sementes de beleza
E que
- às vezes -
No chão do rumoroso deserto em que pisas,
Brota o milagre da canção!

Mario Quintana (A cor do invisível, p 22)

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Se o poeta falar num gato


    Se o poeta falar num gato, numa flor,
    num vento que anda por descampados e desvios
    e nunca chegou à cidade...
    se falar numa esquina mal e mal iluminada...
    numa antiga sacada... num jogo de dominó...
    se falar naqueles obedientes soldadinhos de chumbo que morriam de verdade...
    se falar na mão decepada no meio de uma escada
    de caracol...
    Se não falar em nada
    e disser simplesmente tralalá... Que importa?
    Todos os poemas são de amor!

    Mario Quintana (Antologia Poética, p 106)

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Herói


Camarada impulsivo que morre cedo.

Mario Quintana (Caderno H, p 339)

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Às vezes tudo se ilumina


Às vezes tudo se ilumina de uma intensa irrealidade
E é como se agora este pobre, este único, este efêmero instante do mundo
Estivesse pintado numa tela, sempre...

Mario Quintana (A cor do invisível, p 72)

domingo, 12 de dezembro de 2010

Porto parado


No movimento
lento
das barcaças
amarradas
o dia
sonolento
vai inventando as variações das nuvens...

Mario Quintana (A cor do invisível, p 23)




sábado, 11 de dezembro de 2010

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Do sonho


Sonhar é acordar-se para dentro.

Mario Quintana (Caderno H, p 316)

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Libertação


     ... até que um dia, por astúcia ou acaso, depois de quase todos os enganos, ele descobriu a porta do Labirinto.
     ... Nada de ir tateando os muros como um cego.
     Nada de muros.
     Seus passos tinham - enfim! - a liberdade de traçar seus próprios labirintos.

Mario Quintana (A vaca e o hipogrifo, p 115)

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Jardim interior


    Todos os jardins deviam ser fechados,
    Com altos muros de um cinza muito pálido,
    onde uma fonte
    pudesse cantar
    sozinha
    entre o vermelho dos cravos.
    O que mata um jardim não é mesmo
    alguma ausência
    nem o abandono...
    O que mata um jardim é esse olhar vazio
    de quem por eles passa indiferente.

    Mario Quintana (A cor do invisível, p 31)

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Vivências


Os muros gretados são muito mais belos
que os muros lisos.

Mario Quintana (A vaca e o hipogrifo, p 214)




Citando Elisa Lucinda...

 Libação
É do nascedouro da vida a grandeza.
É da sua natureza a fartura
a ploriferação
os cromossomiais encontros,
os brotos os processos caules,
os processos sementes
os processos troncos,
os processos flores,
são suas mais finas dores

As conseqüências cachos,
as conseqüências leite,
as conseqüências folhas
as conseqüências frutos,
são suas cores mais belas

É da substância do átomo
ser partível produtivo ativo e gerador
Tudo é no seu âmago e início,
patrício da riqueza, solstício da realeza

É da vocação da vida a beleza
e a nós cabe não diminuí-la, não roê-la
com nossos minúsculos gestos ratos
nossos fatos apinhados de pequenezas,
cabe a nós enchê-la,
cheio que é o seu princípio

Todo vazio é grávido desse benevolente risco
todo presente é guarnecido
do estado potencial de futuro

Peço ao ano-novo
aos deuses do calendário
aos orixás das transformações:
nos livrem do infértil da ninharia
nos protejam da vaidade burra
da vaidade "minha" desumana sozinha
Nos livrem da ânsia voraz
daquilo que ao nos aumentar
nos amesquinha.

A vida não tem ensaio
mas tem novas chances

Viva a burilação eterna, a possibilidade:
o esmeril dos dissabores!
Abaixo o estéril arrependimento
a duração inútil dos rancores

Um brinde ao que está sempre nas nossas mãos:
a vida inédita pela frente
e a virgindade dos dias que virão!



Fonte: Casa poema 

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Imaginação


A imaginação é a memória que enlouqueceu.

Mario Quintana (Caderno H, p 164)

domingo, 5 de dezembro de 2010

Os intermediários


     Não me ajeito com os padres, os críticos e os canudinhos de refresco... Não há nada que substitua o sabor da comunicação direta.

Mario Quintana (Caderno H, p 295)

sábado, 4 de dezembro de 2010

A imagem e os espelhos


     Jamais deves buscar a coisa em si, a qual depende tão somente dos espelhos.
     A coisa em si, nunca: a coisa em ti.
     Um pintor, por exemplo, não pinta uma árvore: ele pinta-se uma árvore.
     E um grande poeta - espécie de rei Midas à sua maneira - um grande poeta, bem que ele poderia dizer:
     - Tudo o que eu toco se transforma em mim.

Mario Quintana (Caderno H, p 163)

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

O que o vento não levou


    No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas
    que o vento não conseguiu levar:

    um estribilho antigo
    um carinho no momento preciso
    o folhear de um livro de poemas
    o cheiro que tinha um dia o próprio vento...

    Mario Quintana (A cor do invisível, p 135)



quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Uni-verso



     "Treme a folha no galho mais alto"- escrevo. Paro e sorvo, de olhos fechados, o cheiro bom da terra, do capim chovido... Parece que quer vir um poema... Abro os olhos e fico olhando, interrogativamente, a linha que escrevi no alto da página. Depois de longo instante, acrescento-lhe três pontinhos. Assim não ficará tão só enquanto aguarda as companheiras. O vento fareja-me a face como um cachorro. Eu farejo o poema. Ah, todo o mundo sabe que a poesia está em toda parte, mas agora cabe toda ela na folha que treme.
     Por que não caberia então em um único verso? Um uni-verso.
     Treme a folha no galho mais alto.
     (O resto é paisagem...)

Mario Quintana (Caderno H, p 248)